quinta-feira, novembro 30, 2006

Explicação do sertão



Meu corpo está suado.
Nas costas, sinto a poeira que insiste em se integrar à minha pele morena.
Morena, mas desacostumada de sertão.
Tudo aqui é lentidão e vagareza.
O tempo se arrasta em minutos triplicados pela força do sol incandescente.
Lá fora, a rua se transmuda num arremedo de deserto.
Não há ninguém.
As pessoas fogem do calor como podem.
Às 11 horas da manhã, fecham-se as portas do comércio (que reabre apenas no meio da tarde).
Ninguém entra, ninguém, sai, ninguém produz ou consome.
A vida aqui começa no frescor das cinco da manhã e segue firme até as 10h30.
O resto é um modo singular que o sertanejo inventou para passar os dias.
Um almoço e uma sesta quase interminável partem a existência ao meio.
No final da tarde, um banho frio, uma voltinha na praça. E só.
Aos mais velhos, resta a calçada, a cadeira de balanço, o escárnio e o mal-dizer medieval e inofensivo.
Uma vez por ano, no entanto, o panorama muda:
vassalos e damas adolescentes brincam de realeza
trocando olhares furtivos e bailando ao som de instrumentos populares
na festa que homenageia o padroeiro.
No mais é olhar pro relógio e perceber, com assombro, que os ponteiros restam, estagnados, no mesmo ponto em que estavam, minutos antes...


Goimar

Japi – Sertão do Rio Grande do Norte

22/12/2004

domingo, novembro 26, 2006

Meu pai em minha rua



Hoje eu senti um arrepio extremo
ao vislumbrar um homem em minha rua.
Gesticulava em meio a uma conversa,
vestia um short e tinha as costas nuas.

Era um retrato completo e fiel...
Da sua imagem possuía tudo...
Como é possível ter a aparência
de quem não faz mais parte deste mundo?!

Fiquei parada enquanto olhava a cena.
Mal conseguia acreditar em tudo.
Tinha seu jeito e sua impaciência.
E uma eloqüência de explicar o mundo.

Me deu vontade de correr pra ele
e abraçá-lo vendo a fronte tua.
E assim sentir a perfeição do toque
e resgatar a vida em meio à rua.

Observava sem nenhum cansaço
e me invadiu uma tristeza muda.
Por ter certeza de uma coincidência
e não de ver meu pai em minha rua.

Mas aí lembro: é 26 de março.
Não é uma data tão simples assim...
Faz nove anos e três meses longos,
que te levaram pra longe de mim.

Por isso creio num presente teu
e por momentos regressei no tempo.
Alimentei as ilusões perdidas.
Matei saudades por instantes plenos.


Goimar Dantas
Em algum dia de 1995.

quinta-feira, novembro 23, 2006

DNA



O cheiro de terra molhada
traz à tona a poesia.
Ela penetra pela janela,
invade o quarto,
toma meu corpo de assalto
e aguça meus cinco sentidos.
Recebo, então, o chamado:
“- Vai. Escreve. Põe no papel os versos ditados por teu coração”.
Obedeço.
Submissa.
Feliz.
Grávida de palavras.
Assim nasce o poema.
Filho adorado da chuva
e do sopro criador
que ela lança sobre mim.


Goimar Dantas

Arthur Nogueira 02/04/2005

sábado, novembro 18, 2006

Religare




Recuperei a fé
porque teus olhos... Cristo!
Teus olhos são uma epifania.
E eu era tão descrente até deparar com eles...

Hoje, devota fervorosa das suas pupilas dilatadas,
rezo, ajoelho e rogo pela onipresença deles em minha vida.
Suplico pela benção de tê-los todos os dias sobre mim e, assim,
carola carente, confessar a eles o meu amor eterno.

A simples lembrança deles me redime, me salva, me aproxima de Deus.
E enquanto todos os olhos do mundo seguem sendo as janelas da alma,
os teus são, a meu ver, a própria visão do Paraíso.
Um modo de o Criador se revelar de fato.
Tal qual a Virgem Maria teus olhos parecem, sempre, interceder a meu favor.

Em oferenda, me entrego a eles – sem sacrifício –, dizendo amém!

Gói
10/08/05

segunda-feira, novembro 13, 2006

O ventre da tarde cigana












A primeira vez que vi a poesia
ela estava no céu disfarçada de crepúsculo.
Nuvens e raios de sol davam-lhe ares de cigana
sedutora, daquelas vestidas com longas saias rodadas, vermelhas.

Mas era 1974 e aos dois anos de idade
nenhuma cigana-crepúsculo era tão terna e quente quanto
o calor da mão da minha mãe –
que me guiava pelas vias de Uberlândia, nas Gerais.

Porém, a tarde cigana, vaidosa, não se deu por vencida.
Queria mesmo se eternizar na mente da menina.
De um golpe só, levantou a saia faceira
e me deixou ver, na curva de uma esquina,
a figura de meu pai.
Inocente da trama orquestrada pela dama vespertina,
o jovem Pedro vinha em nossa direção.

Pingo de gente independente,
corri para abraçá-lo e me fundir àquela pintura de pôr-do-sol
– o mais rápido que me permitiram a idade,
as perninhas curtas
e as sandalinhas de couro branco.
Pronto!
A imagem fora eternizada.
Nascia, do ventre da tarde cigana,
a minha recordação mais antiga.
Emoldurada, na tela eterna da poesia.


Goimar Dantas,
São Paulo
19/09/05

sexta-feira, novembro 10, 2006

O amor nos tempos da cólera




O amor nos tempos da cólera

Esperei que ele ligasse.
Minha juventude também.
Um dia, porém, nós duas nos cansamos.
E as dúvidas deram lugar às rugas.
Envelheci .
Quando, finalmente, ele decidiu me procurar,
eu já usava bengala devido à osteoporose .
Foi numa tarde do outono da minha vida .
Soou a campainha .
Abri a porta e ele estava lá.
Careca, pálido, enrugado.
Engoli o susto e disse, ranzinza:
-“O que foi?! O que você quer?!”
E ele: -“Perdão pela demora. Você é o meu grande amor”.
Mandei o velho passear.
E bati a porta – o coração dilacerado, a alma em febre.
Poucos dias depois, morremos os dois, de desgosto.
Ao chegar ao céu,
Nossas almas readquiriram o frescor jovial.
Fiquei linda de novo e me engracei com Vinícius de Moraes,
apenas para enciumar meu verdadeiro amor.
O poetinha nada sabia e me dedicou poemas
lindos que ele soprava no ouvido de
um jovem escritor carioca.
Mas meu plano vazou
e fui chamada por São Pedro -
que me passou um “sabão”.
Vi o quanto estava sendo infantil e estúpida.
Perdoei meu velho amor.
E expliquei tudo a Vinícius que, a bem da verdade,
já estava de olho em outro rabo de alma, digo, de saia.
Vivemos felizes para sempre e o autor de
“Soneto do amor total”
passou a poemar sobre nossa história.
Mas, desta vez, soprando
versos e estrofes no ouvido de uma
moça potiguar.
E foi assim que nos tornamos sucesso.
Repente de cordel,
filme premiado,
enredo de novela,
tema de exposição.
Passo novo de xaxado,
melodia de baião.
E no céu, sempre que os escritores
nos viam repetiam
a máxima de Fernando Sabino:
“E no final, tudo vai dar certo
e se não der certo é porque não chegou ao final”.

Goimar
Santa Rita do Sapucaí
30/04/06