segunda-feira, fevereiro 26, 2007

Amoremar


Amoremar

Todo o verde à minha volta
todo o mar que é só revolta,
vôo solo da gaivota...
Tudo me lembra você!
Ondas ferindo areias,
luas e marés cheias,
canto ao longe das sereias
(tristeza a não ter mais fim...)
Abro o coração ao vento
que escutando os meus lamentos,
conta tudo para o céu.
E, então, o céu se comove
e chora a não mais poder...
Desaba em lágrimas doces,
cadências do meu sofrer.
E sei que tanto tormento
queima, machuca, angustia!
Destoa das alegrias
de um mundo cuja euforia
faz refrão longe de mim.
Mas, sendo o fingir a regra
e o ofício de nós, poetas...
Sorrio – um tanto sem pressa
disfarço, assim, meu pesar.
Pois dentro de mim: só névoa.
Estrada sem horizonte.
Caminhos, rios sem ponte,
ausência de solução.
Amoremar – verbo novo!
Palavra rompendo o espaço,
rima que escapa ao laço,
som que resume os “ais”.
De todos os viajantes.
De todos os derrotados.
Dos que fugiram da vida
e se entregaram pro mar.
E o que são “ais”?
Melodias!
São sílabas das poesias!
Versos de peito-cais!

Goimar Dantas
Juréia de São Sebastião
Litoral Norte de São Paulo
17h21, em 06/01/2007
Imagem: pôr-do-sol em Maresias, acervo pessoal

quinta-feira, fevereiro 15, 2007

Infância



Infância



Faz tempo.
Era noite de São João.
A fogueira feita pelas crianças da rua formava lindas labaredas.
Naquela época, eu ainda não havia lido livro algum.
Tampouco sabia sobre a simbologia ancestral e mítica do fogo.
Estávamos, meninos e meninas, em círculo.
E eu também nada entendia sobre o significado transcendente dessa representação geométrica e sobre o grande poder concentrado em áreas esféricas: invocações tribais, ritos iniciáticos, cerimônias sagradas...
Aquele mundo multicor e singelo em que eu vivia meus primeiros anos também desconhecia de todo a filosofia oriental.
Yin e Yang eram palavras que nada me diziam.
Nada representavam no meu universo pleno de brincadeiras pueris.
A divisão entre o masculino e o feminino, para mim, naquela noite de São João, era absolutamente simplista: bonecas para as meninas e carrinhos para os meninos.
Só.
É verdade, no entanto, que já me intrigava a capacidade masculina de, rapidamente, aprender a jogar pião ou bola de gude.
De resto, quase empatávamos, ressaltando que ninguém subia nos pés de seringueira com maior rapidez e habilidade do que eu.
Lá estava a fogueira.
Lá estavam futuros homens e mulheres formando um círculo de igualdade incontestável.
Não havia intrigas, guerras sexistas...
Só o calor do fogo e o ritmo doce e inquebrantável das cantigas infantis...
Eu não distinguia signos, psicanálise, religião.
Era apenas feliz.
E sabia.


Gói

São Paulo
17/10/2004

quarta-feira, fevereiro 07, 2007

Maria, marias



Maria, Marias


Mãe dedicada.
Não tem descanso.
Seu mar é pranto.
E escorre em dias
de alagamento
dos seus tormentos.

Vive de vento.
Planta esperanças.
Sonha fartura
para as crianças.
Tem no seu peito
um leito seco...
Açude murcho,
sem alegria.

Em sua vida
de desenganos,
não houve planos,
só sequidão.
Zé foi embora
buscar trabalho.
Lá na São Paulo
das ilusões.

Morreu caindo
de um edifício.
Andaime frouxo.
Lida de cão.
Ficou Maria,
com seus rebentos,
que se lamentam
sem refeição.

Mas tudo passa.
Roça perdida,
água contada,
poeira vermelha,
o chão da estrada...

Maria segue,
na sua faina.
Mulher de fibra,
Raça morena.
De dia é enxada,
de noite é lenda...

Soluça baixo,
olha pra cima,
pede justiça
pra Padim Ciço.
A prece é velha.
Perdeu o viço.
E o padim Ciço?
Tem compromisso.

Outras Marias,
filhos doentes,
vítimas prenhes
de inanição...
Morrem-não-morrem
espalham um peso
no ar já denso
desse sertão.


Maria é uma,
Maria é mil.
A chaga aberta.
Desse Brasil.

Goimar
São Paulo,
21/12/06

quinta-feira, fevereiro 01, 2007

Um certo Capitão Rodrigo (ou amor de livro)






Um certo capitão Rodrigo...
(ou Amor de livro)


Perdida por entre as terras.
Sozinha, no chão dos prados.
Silêncios, noites em claro.
Temores de escuridão.

Um vento soprando forte,
Minuano “lembra morte”.
Palavras que eram sentenças
da avó, na roca, a fiar...
E toda noite era espera.
Tristeza que se revela.
Ausência de um capitão.

Lenço vermelho no vento,
chapéu nas abas do tempo,
violão a tiracolo,
música solta no ar.
E lá vinha o herói garboso,
montado no seu cavalo.
Apeava com estilo, dizendo:
“Buenas, que me espalho/.
Nos pequenos dou de prancha/
E nos grandes dou de talho/”.

Olhar de dono do mundo,
um charme todo faceiro...
Histórias de viajantes
Se punha logo a narrar.
Conquistava o povoado
Cantando mil melodias,
Relatos de galhardias,
De amores e de folias,
Dos homens a pelear.

Enfrentou a antipatia
Dos grandes de Santa Fé.
Pois não baixava a cabeça,
Não era fraco, temente,
E com seu jeito valente
Bateu o pé resistente:
disse que iria ficar!

Pois tudo o que mais queria
Era Bibiana Terra.
A moça, então, mais formosa
Que existia no lugar.
A filha de Pedro Terra.
Um velho duro na queda,
que o capitão não temia,
mas precisava dobrar.

Depois de muito sufoco,
E de quase morrer à bala,
Finalmente conseguiu
Sua prenda desposar.

Casou-se com Bibiana e
Viveu tranquilo algum tempo.
Mas, depois, viu que era a guerra
E a vontade de lutar, as duas únicas
Damas a quem podia se entregar.

Tilintares de espadas,
Pistolas a disparar,
E ia o guapo pras guerras
Como quem vai a bailar.
A disputar uma prenda,
Sem medo de não voltar.

Tento tirá-lo da mente,
Paixão que me faz doente.
Risada alta e marcante
Que finjo não escutar.

Saio às cegas pelo mundo,
Fantasiando outros rumos,
Em busca de mais romances
Que me desviem o olhar.

Mas esse amor de fronteira,
De galope e montaria,
De terras e ventanias,
Me toma sem perguntar.

E pelos campos eu sigo
Na garupa imaginária
Do soldado destemido
Que eu insisto em namorar.

E as estrelas me abençoam,
Os vagalumes me guiam,
Corujas me desafiam,
Sábias, a me espreitar.

Como é difícil essa sina
De um personagem amar!
Corro, veloz como a luz,
Recebo as marcas do tempo,
Choro, grito e me lamento
Sem de nada adiantar.

Então, desperto do sonho,
À sombra de uma figueira.
Rogo por chuva divina
Capaz de purificar.
De me livrar da lembrança
De Rodrigo Cambará!



23/12/06
Santa Rita do Sapucaí (Sul de Minas Gerais)
Em homenagem à minha paixão mais recente,
o capitão Rodrigo Severo Cambará, personagem do romance
O tempo e o vento, de Erico Verissimo.