domingo, março 29, 2009

A vó que Luzia




Na manhã deste sábado, dia 28 de março de 2009, minha avó paterna, Luzia, se foi. Estou certa de que partiu agarrada à cauda de um cometa porque, afinal, só astros dessa magnitude têm velocidade compatível com seu jeito espevitado e alegre, do tipo que iluminava todo o ambiente. Pude vê-la em pouquíssimas ocasiões, uma vez que uma distância de três mil quilômetros insistia em nos apartar. Mesmo assim, sempre que nos encontrávamos, eu conseguia observá-la o suficiente para me reconhecer em alguns de seus traços mais evidentes: a tagarelice, o jeito apressado de andar e os olhinhos muito escuros e curiosos.

Vó Luzia tinha 84 anos e era dona de uma inteligência e sagacidade privilegiadas que desaguavam, cotidianamente, em um mar de humor afiadíssimo, ácido, irônico e mordaz. Uma característica rara, herdada, em gênero, número e grau, pela minha irmã, Zilmara. Vó Luzia era daquele tipo que perdia os amigos, os genros, os netos, os filhos, os vizinhos... Mas, perder a piada, jamais!

Por isso, nas duas vezes em que esteve com meu bem, meu “Maurício”, não desperdiçou a oportunidade e mandou bala, dizendo: “Tenho pra mim que esse homi não trabalha. Olha a cara dele, gente?! É muito bonito e acho que é a mulher quem sustenta”. E caía na gargalhada, junto com todos nós. Na sua longa trajetória de vida sertaneja, acostumou-se a achar estranho qualquer representante do sexo masculino que tivesse as mãos livres de calos, bem como cabelos e pele bem cuidados. Em resumo: meu bem meu “Maurício”, sempre com aparência impecável e cabeleira de dar inveja a ator de comercial de shampoo, era um alvo e tanto pra pontaria de vó Luzia.

Destoando da maioria das mulheres - que costuma ter aversão a bebidas fortes -, minha avó, até poucos anos, gostava de tomar umas e outras. Sempre que nos recebia em seu sítio, encravado nos confins da Paraíba, pegava a garrafa de cachaça e, solícita, vinha nos oferecer um gole. Ao ouvir nossa recusa veemente, retrucava, em tom jocoso: “Homi... Tome aqui um bocadinho! Isso não dá coragem, mas tira o medo”.

Vó Luzia nunca negou a máxima euclidiana de que "o sertanejo é, antes de tudo, um forte". Prova disso é que nunca deu muita pelota pra sua deficiência física. Apesar de possuir uma perna bem mais curta do que a outra, o que fazia com que mancasse e sentisse fortes dores na coluna, conseguiu dar à luz e - o mais difícil - criar 13 filhos. E é bom que se ressalte: tudo isso no meio do nada, usando as poucas ervas que encontrava na mata  para curar doenças, mau-olhado e qualquer outro problema que acometesse a família.

Tinha horror de andar em veículos automotores: sofria de enjoo crônico com o balançar dos carros. Por conta disso, jamais conseguiu viajar para qualquer lugar muito distante de seu sítio. Também eu sofri do mesmo mal, mas, felizmente, o problema sumiu lá pelos meus 15 anos.

Minha avó sobreviveu à morte de meu pai, seu primogênito e, anos mais tarde, à perda de meu avô Zé Dantas, grande paixão de sua vida. Certa vez, me contaram que mesmo já estando próxima dos 50 anos de casamento, ainda escrevia – ou pedia pra alguém escrever, não me recordo – cartas de amor para meu avô, cheias de versos e declarações tipicamente adolescentes.

Tinha uma memória, uma lucidez e uma eloquência invejáveis. Quando nos vimos pela última vez, em janeiro de 2008, fazia exatamente dois dias que havia sofrido um AVC. Fomos até o hospital e, ao nos aproximarmos de seu leito, vó Luzia segurou a mão de minha mãe com força, feliz por vê-la uma vez mais. Mesmo 23 anos após a morte de meu pai, vó Luzia ainda considerava minha mãe como nora, mesmo ela já tendo se casado novamente. Logo após agarrar sua mão, emendou, eufórica: “Onélia, minha filha!!! Você esteve em Japi? Veio de lá? Encontrou fulano? E beltrano, ainda está vivo? E sicrano? E Maria, tua mãe? Como está?” Postas essas primeiras questões, seguiram-se intermináveis minutos em que prosseguia pedindo informações sobre o paradeiro de quase todos os habitantes de Japi, cidade onde meu pai está sepultado, município localizado no Rio Grande do Norte,  na divisa com a Paraíba.

Minha mãe ficou constrangida porque não se lembrava de metade daquelas pessoas sobre as quais vó Luzia solicitava notícias frescas. E ao perceber que minha mãe não conseguiria produzir o relatório esperado, minha vó não se fez de rogada e resolveu ajudá-la incluindo comentários que pudessem reavivar suas lembranças: “Onélia, minha filha, fulano é aquele que se casou com “A”, mas que também teve filhos com “B”, “C” e “D"... E então, mulher, lembrou?!” E tudo isso apenas dois dias após sofrer um AVC que paralisou metade do seu corpo ágil/frágil.

Fico imaginando o que minha avó não teria sido se tivesse conseguido estudar. Doutora em comunicações? Autora de novelas? Filósofa? Artista? Humorista? Sinceramente, acho que tudo isso.

Miúda, mantinha os cabelos muito lisos, longos e, ainda negros (!!!!), sempre escondidos sob uma inseparável toquinha em estilo rapper. Nunca entendi o por quê dessa mania num calor daqueles.

Acolhedora, ao saber que iríamos visitá-la, preparava tudo com antecedência, de modo a nos tratar como reis. Ao entrarmos na casa, deparávamos com a mesa já posta para o almoço, mesmo que ainda fosse oito da manhã. Minha vó fazia questão de nos servir, dentro de suas possibilidades, o que era um verdadeiro banquete: arroz, feijão, farofa, frango ensopado e peru – que ela criava, ao que parecia, para ocasiões como essas.

Posso vislumbrar a felicidade de vó Luzia ao chegar do outro lado e encontrar meu avô, meu pai e sua inseparável comadre Cotinha – mais uma figura maravilhosa, madrinha de meu pai e a quem eu também chamava de vó.

Ano passado ouvi o seguinte relato de um parente: “Dizem que Dona Luzia e Dona Cotinha aprontavam todas quando se encontravam. Tomavam sua caninha às escondidas dos maridos e, vez ou outra, atrasavam o almoço simplesmente porque não lembravam onde tinham guardado a bacia com o arroz já lavado. Numa dessas ocasiões, conseguiram encontrar a tal bacia horas depois, dentro de uma gaveta.”

Não sei se é verdade, mas que a história é uma delícia, ah, isso é.

Nos seus últimos dias, vó Luzia sofreu muito, com fortes dores decorrentes de um câncer avassalador descoberto havia cerca de um mês. Mesmo assim, tio Manuel me contou que, no intervalo entre as dores, lúcida como sempre, tirava forças Deus sabe de onde pra fazer graça de uma coisa ou de outra.

Por tudo isso, não me resta a menor dúvida: o céu está, definitivamente, mais alegre a partir de hoje.

A bênção, querida avó... E que eu possa ter ao menos metade de sua inteligência, eloqüência, senso de humor e paixão. Talvez não me dê coragem, mas, com certeza, vai tirar o medo.

sexta-feira, março 27, 2009

Das associações



Língua,
pescoço,
fundo do poço,
queda livre,
deleite,
tibum!!!
Deságua,
derrete,
quente,
estremece
na boca
da noite:
dois viram um.

Goimar Dantas
São Paulo
27-03-09

quarta-feira, março 25, 2009

terça-feira, março 24, 2009

Encantos



Sábado passado, dia 21, todo mundo aqui em casa foi ao Cinesesc ver o documentário Palavra (en)cantada (direção de Helena Solberg). Um exercício raro de delicadeza. Eu sabia que seria assim e, por isso, fiz questão de levar as crianças. Ambos fizeram um bico enorme quando escutaram o termo “documentário”, mas, ao fim, gostaram muito e deram boas risadas com o depoimento “perfomance” do Tom Zé.


As crianças, em raro momento "meiguice", aproveitando os puffs do Cinesesc.

Helena Solberg conseguiu reunir grandes compositores e intérpretes brasileiros para refletir sobre a força da palavra e o modo como ela integra e perpassa a música brasileira. Um caso único em todo o mundo. Afinal, como, num país tão carente de educação e cultura, nossos artistas conseguem se destacar, musicalmente, com tamanha qualidade? Mais ainda: como milhões de brasileiros, por vezes, saem cantando letras rebuscadas como as de Cartola, Chico ou Caetano (para ficar só em alguns exemplos) como se entoassem um simples e corriqueiro “Atirei o pau no gato”?

Os depoimentos tão belamente coletados por Helena e sua equipe nos fazem pensar sobre essas e outras questões. Chico, Betânia, Adriana Calcanhoto, Lirinha, Tom Zé, Jorge Mautner e Lenine são apenas alguns dos nomes de peso que dão o ar da graça no documentário, todos exalando poesia. Felizes por participar de um projeto como esse. Faltou a presença atual de Caetano, que só aparece em imagens de arquivo. Li em algum lugar que ele estava viajando na época em que foram feitas as gravações. Pena.

Na tarde do mesmo sábado, antes de irmos ao Cinesesc, fomos à maternidade ver outro encanto: a fofa da Gabriela, filhinha da Luciana e do Paulo Fendler, que trabalham com meu bem, meu "Mau".


Olha só que coisinha mais encantadora...

sábado, março 21, 2009

Caiçara do Rio do Vento


Acima, a cidade de Caiçara do Rio do Vento, em foto inspiradíssima de Márcio Carvalho.



Descobri que lá no Rio Grande Norte,
estado onde nasci,
existe uma cidade cujo nome é Caiçara do Rio do Vento...

Ah... Como eu queria ter vindo ao mundo nesse lugar com nome de poesia!

Imaginem só o diálogo:

“-Oi, tudo bem? Você é de onde?
-Eu? Eu sou de Caiçara do Rio do Vento...”

Aposto um cheiro de chuva:
quem nasce lá, já vem ao mundo sabendo nadar!
Toma sol no mato,
escorrega no arco-íris,
vive de brisa,
salta no tempo,
brinca de ler pensamento.

Deus do céu...
Ainda hei de fazer um poema
sobre uma moça morena
que queria ter nascido Caiçarense...

À beira das águas de um Rio
que recebe, todos os dias,
o beijo do Vento.

Goimar Dantas
(Natural de Santa Cruz/RN)
Em São Paulo, 17-03-09

sexta-feira, março 20, 2009

terça-feira, março 17, 2009

Meu Fernando Pessoa


Yuri, meu filho: geminiano da gema, com um de seus heterônimos.

(O poema abaixo já foi publicado aqui em 17 de junho do ano passado, no aniversário do Yuri. Mas acho que a foto e o contexto que ela apresenta valem o repeteco).


Meu rei,
meu príncipe,
meu menino,
meu herói,
meu mocinho,
meu cowboy,
minha estrada,
minha luz...
Meu signo de lua,
minha música à capela,
meu poema premiado,
meu enredo de novela...
Meus sentidos,
minha sina,
meu brinquedo de menina,
meu anjinho tão moreno,
meu remédio,
meu veneno...
Meu cantor de rock and roll,
meu artista preferido,
meu atleta destemido,
meu fogo,
meu ar,
meu mar...
Meu sonho mais encantado,
meu eterno namorado,
meu garoto tão levado,
meu São Jorge,
meu dragão!
Você é tudo e é sempre
a minha fé,
o meu guia!
Meu caminho,
a semente.
Meu passado,
meu futuro,
o meu mais lindo presente!
Meu filhinho,
meu orgulho.

Goimar Dantas,
a mãe do Yuri
Em 21/02/07

domingo, março 15, 2009

Milk



Sexta à noite fui assistir Milk – A voz da igualdade (direção de Gus Van Sant e roteiro de Dustin Lance Black, 2008). Durante a projeção, chorei umas cinco vezes, absolutamente comovida pela extraordinária atuação de Sean Penn, que levou o Oscar de Melhor Ator interpretando o não menos extraordinário Harvey Milk, ativista e líder da luta pelos diretos homossexuais nos anos 70 e primeiro gay assumido a conquistar um cargo público nos EUA.

O filme, que também faturou a estatueta de melhor roteiro original, é, a bem da verdade, uma obra superlativa, repleta de performances magníficas e cenas antológicas. As que incluem as passeatas são, a meu ver, um show à parte, porque expressam com força impressionante a importância crucial do sentido de união – tão necessário às grandes mudanças.

Para além disso, essas mesmas cenas revelam o excepcional carisma do protagonista, aliado à sua inteligência coroada por uma verve privilegiada – qualidade indispensável à luta contra as diretrizes de uma sociedade preconceituosa, no caso, a americana, mas que bem poderia ser a nossa, a de nossos vizinhos e a de tantos outros países do Ocidente e do Oriente.

Em sua saga de oito anos, tempo que levou para se eleger para o Quadro de Supervisores de São Francisco, em 1977, Milk empresta voz a um discurso pontuado por questões que, há séculos, já deveriam dar o tom das relações humanas: igualdade, liberdade, fraternidade. Uma tríade que é cerne da oratória e das ações dessa personagem real, mas que, em pleno século 21 – e na falta de pessoas com a mesma coragem e idealismo –, permanece, grande parte das vezes, reclusa entre a capa e a contracapa dos livros de História.

Assistir Milk faz com que acreditemos que, por vezes, é possível transformar a tal tríade em realidade palpável, construindo novas e poderosas histórias que, finalmente, possam alterar àquela outra, curiosamente grafada com o “H” maiúsculo.


quarta-feira, março 11, 2009

A professora de piano



Imagem: At The Piano, 1858-59; pintura de Whistler, James Abbott McNeill (1834-1900). Óleo sobre tela, 67 x 91.6 cm; The Taft Museum, Cincinnati, Ohio 3.

Eu deveria ter uns nove anos quando conheci Lúcia. Dona de uma beleza clássica, a moça tinha a pele clara, pontuada por sardas charmosas que se espalhavam pelo rosto. O nariz era perfeito: pequeno e afilado e, no lugar dos olhos, o que se viam eram dois faróis muito vivos e agitados, lançando luzes castanhas sobre pessoas, objetos e paisagens aos quais miravam. Os lábios rosados, o sorriso franco e os dentes alvos completavam o quadro.

Lúcia gostava de trazer os cabelos soltos, enfeitados por uma tiara. Eram lisos, volumosos, cheios de vida, mantidos à altura dos ombros e emoldurados por uma franja que emprestava à moça certo ar brejeiro. Aos 17 anos, devia medir cerca de 1,70 de altura. Seu porte, seus trejeitos e inteligência em nada lembravam alguém que apenas se despedia da adolescência.

As mãos eram um capítulo à parte. Para além da beleza, detinham um poder quase sobrenatural na medida em que, ao deslizar sobre teclas de piano, presenteavam Bach, Beethoven, Mozart e outros gênios da música, com mais alguns minutos de vida. E foi justamente essa habilidade que acabou por nos aproximar.

Naquele começo da década de 80, eu estudava no rígido Conservatório Municipal de Cubatão, uma instituição de ensino gratuita e extremamente conceituada na região. E ao tomar conhecimento do ensino de excelência oferecido pelo Conservatório, minha mãe resolveu que eu, com apenas sete anos, iria estudar lá. Simples assim.

Não demorou para que eu me destacasse como a pior aluna de todos os tempos. Um caso verdadeiramente perdido, a despeito de meus esforços para acompanhar as aulas de prática e de teoria musical. Um esforço mecânico, diga-se, porque desprovido do talento e da vontade genuína de aprender a tocar. A meu favor, só a minha precoce - mas já bem desenvolvida - dificuldade de aceitar o fracasso ou qualquer coisa que se assemelhasse a ele.

Eu seguia tentando, mas após bater meu próprio recorde de sucessivas notas baixas, Beth, minha professora de piano, chamou minha mãe num canto e vaticinou: “Dona Maria Onélia, é o seguinte: ou a Goimar toma algumas aulas particulares ou não conseguirá passar de ano. Eu faço o que posso, mas ainda é pouco para o tanto que ela precisa. Posso indicar a Lúcia, minha ex-aluna e ótima pianista.” A grana lá em casa era curtíssima. Mesmo assim, pra variar, minha mãe deu um jeito e lá fui eu ter aulas com a exímia musicista.

Logo no primeiro dia, a surpresa: a moça morava numa casa que eu, desde muito menina, achava linda, situada no bairro vizinho ao meu. Aquele imóvel típico de classe média dos anos 70, todo coberto com pastilhas rosas (sim, na época eu achava bonito), era, na minha opinião, uma espécie de mansão. Coisa de gente rica, com direito até mesmo a um pequeno jardim, além de uma varanda com enormes janelas de vidro. Incrível a dimensão das coisas quando a gente é criança e pobre, assim, nessa ordem.

O instrumento ficava na sala e Lúcia só precisou de uma única horinha para corrigir minha postura desengonçada, bem como o modo largado e desprovido de elegância com que eu movimentava as mãos sobre o teclado.

Detentora de uma técnica apurada, ela dizia: “Goimar, preste atenção nas suas articulações. Observe seus dedos: estão quase deitados sobre as teclas. Não pode ser assim! Eles precisam de força, mas também de leveza, graça. Veja só como se faz”. E então ela tocava e me mostrava como transformar mãos em pontes que conduziam ao paraíso. Impossível repetir o feito. Pelo menos para mim.

Lúcia era séria, reservada. Certo dia, porém, seu irmão mais velho – por quem nutri uma paixonite infantil e platônica – invadiu a sala e gritou: “Lúcia! Corre, vem ver! O ônibus espacial chegou!!!”. E lá foi Lúcia, em desabalada carreira, na direção de outro cômodo da casa, empolgadíssima com a chegada da tal missão espacial transmitida, ao vivo, pela televisão. Fiquei ali sozinha, com cara de Mané, sem entender o por quê daquele alvoroço por causa de um ônibus.

Com a ajuda de Lúcia, consegui notas razoáveis nos exames daquele ano, culminando com o fim das aulas particulares. Ocorre que minha incompetência musical era invencível e, bastaram as lições avançarem, ano após ano, para que minha mediocridade se agigantasse aos olhos de todos. Não tinha mesmo jeito e, antes de completar 12 primaveras, larguei os estudos de piano. E foi uma sensação incrível de libertação e alívio.

O tempo seguiu seu curso e, aos 17, cursando o colegial e felicíssima por seguir minha vocação de leitora compulsiva, recebi a notícia: Lúcia, então com 25 anos, tinha câncer no seio. Fiquei chocada. Tudo o que me vinha à mente era a beleza daquela moça, deslizando suas mãos adolescentes pelo piano, sempre com desenvoltura ímpar; gritando, feliz da vida, pelo sucesso da tal missão espacial; trajando bermudas e camisetas de tons e estampas delicadas e exalando, a cada vez que me recebia para as aulas, um cheiro bom de sabonete Alma de flores.

Também me lembrei do dia em que empaquei numa música, errando sempre a mesma passagem. Foi a única vez em que ela perdeu a paciência comigo. Talvez porque já soubesse que eu não tinha mesmo o menor jeito pra coisa e que, ao fim e ao cabo, eu estava era tomando seu tempo e sua juventude.

Lúcia faleceu poucos meses após ter descoberto a doença e, por um desses mistérios inexplicáveis, vinte anos após sua partida, volta e meia a moça ainda invade meus pensamentos com uma força descomunal.

Dia desses sonhei com ela e acordei tomada pela sensação de que precisava dedicar-lhe um texto. Afinal, a maturidade me mostrou que a prosa também é um tipo de música em que linhas funcionam como partituras; sílabas, como notas; vírgulas, como pausas; autores, como maestros; coesão e coerência, como harmonia. E tudo obedecendo a um ritmo próprio, que caracteriza as sinfonias compostas de palavras.

E é uma dessas sinfonias que posso oferecer à Lúcia como singelo agradecimento por ter me dedicado algumas horas do seu pouco tempo sobre a terra. Tudo para tentar me ensinar a maior dentre todas as artes. Justamente aquela que prescinde de palavras para emocionar a todos, sem distinção.

Aceite, professora, essa sinfonia executada sob a batuta da prosa e, por isso mesmo, tão cheia de limitações. É só o que sou capaz de fazer quando desejo tocar um determinado órgão bastante musical e do qual, acredito, jamais vou desistir de extrair não apenas sons, mas também sentimentos e emoções: o coração das pessoas.

domingo, março 08, 2009

Dia Internacional da Mulher



Exercício de reflexão e delicadeza criado especialmente para o Dia Internacional da Mulher, em 2008, pela Cristiana Guerra e pelo Daniel de Jesus, da agência Lápis Raro, de Belo Horizonte. A Cristiana é também a criadora do excelente blog Para Francisco, cujos textos geraram livro de mesmo nome, lançado ano passado pela editora Arx. Vá lá!

sexta-feira, março 06, 2009

terça-feira, março 03, 2009

Ao novo Drummond





Você, poeta, desse jeito,
tira Drummond do meu peito
e se instala lá de vez.
Ocupa o que é seu por direito
E me toma para si:
Musa abstrata e longínqua
Mas que, certo dia (assim será),
Vai se materializar.
E então, no eterno das horas,
Seremos, os dois, um poema:
Sintaxe, língua e morfema,
Verbo e carne,
Céu e mar.

Goimar Dantas
São Paulo
Em 27-02-09

domingo, março 01, 2009

Obra em progresso

Há coisa de uns três anos mandei uns poemas meus pro e-mail do Leandro D'arco, um músico que, nas horas nada vagas, trabalha como executivo no mercado corporativo, juntamente com meu bem, meu "Mau". Leandro recebeu os poemas perto das 18h, pouco depois, segundo conta, imprimiu todos, desligou o micro e foi pra casa.

Menos de duas horas depois, ele gravou esse vídeo musicando um deles. É São Paulo Poesia. O interessante da gravação é vermos o processo de trabalho na íntegra, com seus erros e acertos. Reparem como Leandro apresenta dificuldade em achar a melodia certa pra uma das frases iniciais, indo e voltando umas cinco vezes. Em seguida, deslancha e entra completamente no espírito da coisa. Algum tempo depois de ele me mandar esse vídeo, pedi autorização pra postá-lo aqui no blog e, imediatamente, ouvi: "Que nada, querida! Podexá: faço um novo e te mando. Aquele lá tem uns probleminhas e quero corrigir". HAHA. Tô esperando até hoje...

Não faz mal. Depois de tanto tempo, Leandro já me autorizou a postar a obra do jeitinho que está aí: "em progresso". E como eu desconheço mãe que ache filho feio, escuto a música, lembro que a letra é minha e fico aqui babando. Só tenho a agradecer ao Leandro que não ficou só nisso e ainda musicou outro de meus poemas. Para ver essa outra performance do moço, é só clicar aqui e escutar O amor de Janaína. Já a letra de São Paulo Poesia está logo abaixo.





São Paulo Poesia

São Paulo, lamento e caminho, metrópole e ninho, sonho e sedução...
São Paulo, de arrependimentos, prazeres, lamentos, calma e confusão.
São Paulo, da terra molhada, da pele encharcada de raios de sol.
São Paulo, furor pós-moderno, cópia dos infernos, Éden nos Jardins.
São Paulo de mil movimentos, espaços e ventos, verões e manhãs.
São Paulo dos bares e ruas, dos céus e das luas, putas seminuas.
São Paulo, conceito abstrato, do sangue no asfalto, tortura e tesão.
São Paulo, caminhos diversos, atrasos, progressos, trem de uma nação.
São Paulo, paixão visceral, da lama e do caos, sinos, catedrais.
São Paulo dos mil artifícios, dos medos e gritos, luz e escuridão...
São Paulo, trilha de bandeiras, de amor sem fronteiras pro mundo lá fora.
São Paulo das mil hierarquias, das periferias, do samba e do jazz.
São Paulo, poesia concreta, na ferida aberta de todos os loucos.
São Paulo, magia de Houdini, cena de Fellini, Glauber, Mazzoropi...
São Paulo, donzelas vadias, meretrizes castas no centro das praças.
São Paulo, reino dos pilantras, palco de carrascos, de deuses nefastos.
São Paulo, Brasil solidário, berço abençoado no Pátio do Padre.
São Paulo, terra dos gigantes, eternos viajantes, peões e empresários.
São Paulo, rios e viadutos, alegrias e lutos, fonte de afeição.
São Paulo, sem definição! Castigo ou perdão? – Xaxado e baião.
São Paulo, da complexidade e da filosofia de um bom botequim.
São Paulo, roteiro de amores e de dissabores, carma do sem-fim.
São Paulo, tempero da vida. Bela, mas... Bandida. Socorro! Ai de nós!
São Paulo do espírito inquieto, moleque irrequieto nas ruas, sinais...
São Paulo da Santa Poesia, da doce utopia, do norte sem cais...
São Paulo, que acolhe e domina, maltrata e ensina:
TE AMO...
Sem mais!

Goimar Dantas
São Paulo
10/08/2004