terça-feira, outubro 31, 2006




A chuva


Em cada gota uma esperança.
Um signo de futuro.
Um alimento líquido de fé.
Depois de meses de seca,
a chuva desaguava generosa,
penetrando nas veias do chão batido,
bombeando energia vital para o solo – que pulsava num orgasmo múltiplo e feérico.
Acima da terra,
casas caiadas desciam um tom na sua pintura frágil,
já desbotada pelo tempo, pela poeira, pelo sol.
Quanto aos moradores...
Ah, esses vivenciavam uma euforia atonal,
Indescritível em seu estilo sertanejo de comemorar.
Velas para São José.
Louvores para Nosso Senhor.
Cânticos para Nossa Senhora.
Lá fora, crianças se banhavam na água purificadora
E, como eram crianças, se atiravam na lama depois
(sem nenhuma culpa judaico-cristã).
A noite posterior à chuva trouxe, junto com a brisa,
harmonias de zabumbas, triângulos, pífanos e sanfonas.
O arrasta pé comemorativo cobriu o terreiro ainda úmido,
fértil, pleno de expectativas, promessas.
Na manhã seguinte, entretanto, “Zé da lida” acordou suado.
Correu pra janela, olhou o horizonte...
Estarrecido, constatou que a chuva tão esperada não passava de um sonho.
Com os nervos há muito abalados pela fome que assistia em casa,
“Zé da lida” não suportou a tristeza.
Desde então, passa os dias na rua, maltrapilho.
Não é um doido agressivo.
Mas vive de assustar a meninada com sons que imitam, certeiros,
o estrondo dos trovões.


Gói

São Paulo, 22/03/2005



quinta-feira, outubro 26, 2006



Personalíssimo

(Em homenagem ao meu pai, Pedro Dantas, que faria 62 anos hoje)


A noite em que meu pai morreu foi longa, longuíssima.
Eu e minha irmã chorávamos muito,
mas nossa dor foi, aos poucos, sendo vencida pelo torpor provocado por uma sucessão de copos de água com açúcar.
Tios, tias e primos tentavam, também atônitos pelo choque, ser fortes, tranqüilos, seguros.
Não vimos minha mãe nessa noite.
Ela estava na casa de minha avó:
lutando, gritando e temendo enlouquecer.
Guerreava contra o sofrimento que acomete aqueles que perdem, de modo trágico e repentino, o grande amor de sua vida.
Enquanto isso, eu e minha irmã derramávamos lágrimas que caíam, como torrentes,
sobre a transparência inocente de nossos pijamas infantis – repletos de estampas de bichinhos e flores.
Também me recordo de, na mão direita – no meio daquela escuridão espiritual –, trazer um anel de prata, com uma pequena estrela no centro.
Na manhã seguinte, pouco depois de acordar de um pesadelo que continuaria aterrorizante mesmo sob a luz do sol, olhei para o anel...
E vi que ele estava negro.
Nem um sinal da cor prata de antes.
Foi quando descobri que a dor excessiva
e as alterações que provoca no corpo e na alma
têm o poder de alterar minérios...
E de ofuscar, autoritárias, o brilho das estrelas.

Gói 17/10/04

quarta-feira, outubro 25, 2006



Tom sobre Tom
(Poema escrito em 8 de dezembro de 1994 – dia da morte de Tom Jobim)

Villa-Lobos está tenso.
Vinícius só faz sorrir.
Vão receber o amigo
que da Terra ousou partir.

Os anjos se reuniram
com a pauta musical.
Vão recebê-lo cantando
num majestoso coral.

O céu precisava mesmo
de um presente de Natal
e Jobim levou o seu Tom
pra festa celestial.

Tudo foi organizado
e arcanjos e querubins
ao lado de Elis Regina
regiam os serafins.

O amigo Ronaldo Boscôli
que acabava de chegar
escolheu o repertório
de esplendor peculiar.

A Garota de Ipanema
foi a grande sensação
uma doce melodia
na voz de Nara Leão.

O maestro soberano
mudou as regras do céu:
foi o primeiro habitante
a entrar com seu chapéu.

Orgulhoso de seu filho
Deus nem ao menos notou
quando Tom entrou fumando
seu charuto transgressor.

A felicidade veio
pra amenizar a saudade
dos amigos que Jobim
perdera pra eternidade.

Agora estão todos juntos
numa só MPB, de poesia
de bossa, de samba
e de bem-querer.

Goimar Dantas

sexta-feira, outubro 20, 2006




Veias em verso

O vermelho seco do meu verso é denso.
Por ele escorre em doce fúria, o pranto.
Nele desliza a valsa do lamento,
na veia vil que se revela en-canto.

No meu salão repleto de tristezas,
escuto as árias da melancolia.
Danço sozinha em meio às incertezas,
que bailam bêbadas, lânguidas, vazias...

Mas é tão belo o mágico espetáculo,
que não vislumbro o amanhecer do dia.
Eu permaneço em minha madrugada.
Cheia de Lua - nova nostalgia.

E vou sozinha ao centro do universo,
erguendo a taça cheia de esperanças.
E bebo às lágrimas, sabor de alma,
despedaçada por tua lembrança.


Goimar Dantas
(em algum dia de 1994)

domingo, outubro 15, 2006




Baianidade grega

Vênus de Milo,
beleza clássica.
Contorno suave,
quadris faceiros.
Vem requebrando:
brejeira, suada, molhada.
Em pleno sertão baiano.
Cantora lírica, nata.
Graves e agudos
ecoam no açude
quase seco.
Supersticiosa.
Dengosa.
Vem toda prosa.
Lenta,
cheia de malemolência.
Equilibrando
a trouxa grande na cabeça.
Sedenta:
de amor, água e sorte.
Brasileira.
Forte!
Nordestina,
menina:
Maria, Bonita


Goimar Dantas
(em algum dia de 1996)

quarta-feira, outubro 11, 2006
















Maresia

O mar viril.
A praia sedutora.
O vai-e-vem obsceno e contínuo das ondas...
O ritmo frenético da arrebentação...
O desejo eterno e voluptuoso de Netuno em cobrir a areia
esparramando-se sobre ela com fúria e deleite.
A mesma areia passiva, suave e submissa.
Toda uma existência à espera do sal de seu amado...
Toda uma existência na ânsia pelo jorro,
pela explosão,
pela espuma branca que evidencia o clímax.
Ah, pobre areia...
Tem de dividir seu rei soberano e insaciável,
pois a natureza é vasta, bela e extremamente feminina...
O desejo inesgotável de Netuno vai além...
E penetra dia e noite as fendas fundas das falésias
ao mesmo tempo em que consome as rochas num abraço incessante e possessivo...
O cio de Netuno é visceral e apaixonado
Dele deriva o maremoto a fim de engolir a terra num beijo molhado e mortal...
E eu, num voyeurismo excessivo, cada vez mais desejosa,
estou, Netuno, em chamas...
Minha agonia brilha altiva sobre a Terra e sobre todos os seus homens
Mas eu, Netuno, só tenho olhos para ti...
Minha loucura é tamanha que invento disfarces...
O tempo todo me modifico, altero ciclos e subverto a ordem das coisas
Apenas para chamar tua atenção...
Há tempos ando perdida...
Já não domino as correntezas que te afastam de mim
E já que não posso estar grávida de ti,
pouco me importa a fertilidade alheia...
Não tenho mais ânimo para nada
e, no meu ofício, já não exerço mais tanta influência como antes...
Poucos ainda se guiam por mim...
Mas há, ainda, os marinheiros que – ao longe – suspiram por minha beleza...
Há, ainda, os amantes saudosos que lançam olhares amorosos em minha direção...
Mas é tarde...
Já naufrago por ti em sonhos e jamais pertencerei a eles.
Não vejo a hora de submergir,
sendo engolida até chegar às tuas profundezas mais escuras e densas...
Ah, Netuno...
Eu queria ser o céu para passar os dias sobre ti
numa contemplação apaixonada, azul e absorta...
E quando chegasse a noite, eu, então, me lançaria sobre ti
numa entrega plena de certezas...
Nesse momento mágico de felicidade infinita, teríamos por testemunhas desse enlace apenas as estrelas...
Ah, por que o sol não explode de vez?
Por que não há um novo reinício dos tempos?
Teríamos chance de nos unir, finalmente?
Teríamos um ao outro ao menos por instantes?
Ah, amado senhor no qual me espelho, mas jamais alcanço...
Há, de certo, alguma maldição que nos aparta desde o princípio das eras...
Caríssimo Netuno...
Queria eu dispor de poderes
para comandar uma nova explosão galáctica que me lançaria sobre tuas vagas...
Mas, como não tenho forças para tanto, receba, meu rei, a minha sombra envolvente
e o meu olhar lânguido sobre ti

Com amor e Sempre tua,

A Lua

Goimar Dantas
São Paulo, 02 de novembro de 2002.
21h19min

















O amor de Janaína

Ondas quebram,
mas não destroem de todo a tua imagem.
Sereia, mergulho profundamente.
Mas não te encontro.
Em desespero ecoa meu canto.
Encanto.
Num canto.
Sozinha.
Lágrimas do meu amor
Emprestam seu sal ao mar – que era doce no início dos tempos.
E eu seco,
definho,
viro lenda.
Não importa.
Reencarnações depois,
você volta como marinheiro, pescador, surfista...
E então, o sal das minhas lágrimas te envolve por inteiro,
penetrando em sua pele e
mesclando-se à sua essência primeva.
E assim, a natureza prossegue
em ciclos e mitos
que dão seqüência aos amores
possíveis e impossíveis.
No mar e no mais...
Tudo é sal – saudade
que existe, apenas,
para gerar em seu ventre
poemas.

Goimar Dantas
Maresias, Litoral Norte de São Paulo

26/03/05

sábado, outubro 07, 2006
















Brincante


O poder do teu olhar.
As minhas pernas bambas.
Saudade de um tempo em que meus membros inferiores tremiam apenas depois de pular corda à tarde inteira.
Você tem o poder de trazer a minha infância de volta.
E, olha, quer saber de uma coisa: não precisa fazer mais nada.
Sexo?
Sim. É muito bom. Mas...
Cá entre nós:
gozar mesmo, gozar de verdade...
É poder viajar no tempo e no espaço
sendo transportada, apenas,
pelo teu par de pupilas dilatadas.

Gói 17/10/04




Dádiva

O olhar do moço
me puxou pra dentro, me engoliu.
E eu, sem resistência, me deixei levar.
Virei menina dos olhos.
Bailarina de retina.
Atriz de palco iluminado com piso de cor castanho.
Mais cedo ou mais tarde,
quando ele chorar,
vou me afogar em prantos, eu sei.
Mas tem nada não, porque mar melhor para morrer não há de haver.
Quem sabe dou sorte e as lágrimas do moço, comovidas,
Vão levar o que sobrar de mim junto com elas.

Aí, feito criança,
Vou escorregar no rosto do moço,
Entrar pelos lábios do moço e,
Então, me misturar na saliva do moço.
Depois disso, é subir um pouco,
Chegar ao céu da boca do moço
E rezar, rezar e rezar...
Agradecida por morte tão doce.


Gói

09/08/05 – São Paulo

A linha do trem




Meu pai era um homem de poucos afetos.
Mas, de quando em vez, passava a mão na cabeça da gente,
como quem diz: “estou aqui”.
Dia perfeito era quando vinha do trabalho com duas barras de chocolate Diamante Negro... E ficava olhando a gente comer com uma ternura alta,
impossível de se alcançar com palavras.
Era a gente adoecer e ele perdia o rumo, endoidava, ficava sem direção.

Tinha um jeito diferente de conduzir as filhas no meio da rua.
Segurava as crias era pela nuca,
com uma mão que trazia a medida exata entre a força e a delicadeza.
Mão que eu passo a vida procurando em tudo quanto é homem e, quando achar...
Aí eu juro fidelidade, caso na igreja de véu, grinalda e buquê de flor de laranjeira.

Era possessivo até não poder mais, o meu pai.
E quando diziam: “Pedro, Pedro... Essas meninas vão dar trabalho...”
Ele respondia, fora de si:
“Na minha casa cabra-macho não vai passar das nove da noite”
(era o jeito dele dizer que, namoro, só se fosse à moda do interior).
Certa feita, confessou à vizinha:
“Se acontecer alguma coisa com uma das meninas, eu morro.
Me mato. Me atiro na linha do trem e fico esperando ele vir”.

Mas não foi o trem que matou meu pai, não...
Pedro morreu foi de rixa antiga – fervida sob o sol forte do sertão.
Nunca, nos 13 anos de vida em que passei ao seu lado,
meu pai me disse um “Eu te amo”
(assim, com esses termos de Aurélio e de Houaiss).
Nem precisou, também.
Pra mim, já basta a imagem forte do trem de ferro vindo
e o pai esperando a morte, solitário, deitado na linha.
Mestre Rosa já dizia em seu Grande Sertão: Veredas:
“Viver é muito perigoso”.
Ao que eu acrescento, com sua licença:
“E está para além dos dicionários”.

Gói,
São Paulo
19/09/05
(Photo by Paulo Monteiro)

São Paulo Poesia


São Paulo, lamento e caminho, metrópole e ninho, sonho e sedução...
São Paulo, de arrependimentos, prazeres, lamentos, calma e confusão.
São Paulo, da terra molhada, da pele encharcada de raios de sol.
São Paulo, furor pós-moderno, cópia dos infernos, Éden nos Jardins.
São Paulo de mil movimentos, espaços e ventos, verões e manhãs.
São Paulo dos bares e ruas, dos céus e das luas, putas seminuas .
São Paulo, conceito abstrato, do sangue no asfalto, tortura e tesão.
São Paulo, caminhos diversos, atrasos, progressos, trem de uma nação.
São Paulo, paixão visceral, da lama e do caos, sinos, catedrais.
São Paulo dos mil artifícios, dos medos e gritos, luz e escuridão...
São Paulo, trilha de bandeiras, de amor sem fronteiras pro mundo lá fora.
São Paulo das mil hierarquias, das periferias, do samba e do jazz.
São Paulo, poesia concreta, na ferida aberta de todos os loucos.
São Paulo, magia de Houdini, cena de Felini, Glauber, Mazzoropi...
São Paulo, donzelas vadias, meretrizes castas no Centro das Praças.
São Paulo, reino dos pilantras, palco de carrascos, de deuses nefastos.
São Paulo, Brasil solidário, berço abençoado no Pátio do Padre.
São Paulo, terra dos gigantes, eternos viajantes, peões e empresários.
São Paulo, rios e viadutos, alegrias e lutos, fonte de afeição.
São Paulo, sem definição! Castigo ou perdão? - Xaxado e baião.
São Paulo da complexidade e da filosofia de um bom botequim.
São Paulo, roteiro de amores e de dissabores, carma do sem fim.
São Paulo, tempero da vida, bela, mas...Bandida. Socorro! Ai de nós!
São Paulo do espírito inquieto, moleque irrequieto nas ruas, sinais...
São Paulo da Santa Poesia, da doce utopia, do norte sem cais...
São Paulo, que acolhe e domina, maltrata e ensina:
TE AMO....
Sem mais!

Gói

Semente lançada em 10/08/2004


Credo profano


Fechei os olhos e subi aos céus
Oceanei na boca de um Deus
Humano, mas, muito poderoso
Criador de todas as minhas feras

E em benefício do meu único vício
Que é esse amor
(Concebido pelo poder do espírito do encanto
Nascido da linhagem das Marias
Crescido pela ousadia dos meus atos)
Foi incendiado, passional e devotado)

Mergulhei na mansidão de certos olhos
E me entreguei durante três dias
Vesti meus véus
e descansei ao lado de um homem forte e portentoso
que não ousaria me julgar em vida ou após a morte

Creio em destinos sacro-profanos
Em lendas divinas e simbólicas
Na tentação dos sonhos
Na sedução dos pecados
Nos prazeres da alma e da carne
Em histórias belas,


Amém !


Goimar,
Santa Rita do Sapucaí
30/04/06