sábado, outubro 07, 2006

A linha do trem




Meu pai era um homem de poucos afetos.
Mas, de quando em vez, passava a mão na cabeça da gente,
como quem diz: “estou aqui”.
Dia perfeito era quando vinha do trabalho com duas barras de chocolate Diamante Negro... E ficava olhando a gente comer com uma ternura alta,
impossível de se alcançar com palavras.
Era a gente adoecer e ele perdia o rumo, endoidava, ficava sem direção.

Tinha um jeito diferente de conduzir as filhas no meio da rua.
Segurava as crias era pela nuca,
com uma mão que trazia a medida exata entre a força e a delicadeza.
Mão que eu passo a vida procurando em tudo quanto é homem e, quando achar...
Aí eu juro fidelidade, caso na igreja de véu, grinalda e buquê de flor de laranjeira.

Era possessivo até não poder mais, o meu pai.
E quando diziam: “Pedro, Pedro... Essas meninas vão dar trabalho...”
Ele respondia, fora de si:
“Na minha casa cabra-macho não vai passar das nove da noite”
(era o jeito dele dizer que, namoro, só se fosse à moda do interior).
Certa feita, confessou à vizinha:
“Se acontecer alguma coisa com uma das meninas, eu morro.
Me mato. Me atiro na linha do trem e fico esperando ele vir”.

Mas não foi o trem que matou meu pai, não...
Pedro morreu foi de rixa antiga – fervida sob o sol forte do sertão.
Nunca, nos 13 anos de vida em que passei ao seu lado,
meu pai me disse um “Eu te amo”
(assim, com esses termos de Aurélio e de Houaiss).
Nem precisou, também.
Pra mim, já basta a imagem forte do trem de ferro vindo
e o pai esperando a morte, solitário, deitado na linha.
Mestre Rosa já dizia em seu Grande Sertão: Veredas:
“Viver é muito perigoso”.
Ao que eu acrescento, com sua licença:
“E está para além dos dicionários”.

Gói,
São Paulo
19/09/05

3 comentários:

Anônimo disse...

Querida irmã..

mesmo que, durante sua vida inteira não tivesse escrito nada, se fosse uma simples dona de casa,mãe de família, funcionária pública, ou nada mesmo, mas se tivesse escrito apenas isto..apenas este texto verdadeiro e altamente observador de um traço tão escondido e complexo de nosso pai, lhe digo irmã, mereceria todos os prêmios de literatura e valeria por tudo que não tivesse feito, e toda obra silenciada que por algum motivo, não nascesse de tuas mãos...

graças a Deus.. não há silêncio em tua vida.

Anônimo disse...

E de repente, me deparo com "A Linha do Trem", essa mesma poesia que me faz chorar a cada leitura, desde a primeira vez. E a poeta do lado dizendo:" Não era pra você chorar desse jeito, menina".

Lindas, a poeta e a poesia!!

Anônimo disse...

Muito bonito.
E os comentários aqui ao lado da Zilmara Dahn e da Joana são não menos.