segunda-feira, maio 30, 2011

Segredos de liquidificador

Se ousarmos arriscar uma rápida definição, podemos descrever os sonhos como uma miscelânea constituída de matéria de memória, cacos do cotidiano, projeções do futuro, impulsos, intuições, desejos explícitos e também reprimidos. E uma vez entregues aos braços de Morfeu, esse mix de ingredientes oníricos é devidamente batido no liquidificador do subconsciente. Como resultado, iniciamos um incrível passeio pelo mundo maravilhoso de nossas próprias Mil e uma noites, repletas de paisagens e cenas tão misteriosas quanto reveladoras.

Dia dessas, por exemplo, sonhei que o escritor Marcelino Freire me presenteava com o nome de um personagem. Acordei em meio à madrugada tomada pela lembrança poderosa daquele substantivo próprio tão sonoro quanto esdrúxulo. Imediatamente, anotei o tal nome que, um dia, usarei em um conto ou romance. Acredito piamente que quando sonhamos com alguém estamos, de alguma forma, estabelecendo contato com essa pessoa –muito embora ela, conscientemente, não se dê conta disso. E por pensar assim, faço questão de cruzar a fronteira do sonho na direção da realidade para dizer: obrigada, Marcelino. De todo o meu coração, obrigada.

sexta-feira, maio 27, 2011

O dia em que descobri meu vício

Soube que era viciada em café há três anos, quando passei por um tratamento odontológico que proibia a ingestão dessa bebida por uma semana. Minha dentista perguntou: “Tudo bem pra você ficar sem café?”. E eu, convicta: “Claro, sem problemas. Só tomo mesmo um golinho de manhã e outro à tarde”. No dia seguinte, às 10 horas, eu já estava subindo pelas paredes, nervosíssima. Foi um choque sem precedentes: eu tinha um vício e não sabia.

Imediatamente lembrei de um chefe que tive na época da faculdade de jornalismo. Ele era alcoólatra e, volta e meia, era acometido por delirium tremens. Lembro de suas mãos chacoalhando na tentativa vã de equilibrar míseras folhas, óculos, canetas. Não demorava muito e ele entrava em sua sala para recompor-se com uma dose de uísque. Então, suas mãos paravam de tremer e tudo voltava ao normal. Eu tinha pena dele. Mais do que isso: o considerava um fraco, um derrotado.

Mas a casa caiu no dia em que fiquei sem meu cafezinho. Passei uma semana de cão até poder voltar a ingerir o líquido negro e fumegante que me acorda e aquece, deslizando quente por minha garganta sempre tão sensível e carente de calor. Desde então, penso um milhão de vezes antes de ter pena de quem quer seja. E quanto a me sentir superior em relação aos alcoólatras, fumantes e que tais, só me resta confessar: Perdi, playboy... Perdi.

Papangu em destaque



Neste mês, o Quem tem medo de papangu? foi um dos destaques do site Educar para crescer, da Editora Abril, que fez uma seleção contendo 10 livros infantis que abordam histórias indígenas e folclore. Para ler, clique aqui.

quarta-feira, maio 25, 2011

Por uma leitura do olhar

Um olhar pode ser um gênero literário. Esferas dilatadas evidenciando romance, drama, suspense, ensaio, poesia, crítica, ficção. E como num processo editorial, exigir etapas de preparação e revisão. Um olhar pode ser também tradução. De desejo, vontade, lampejo. Um olhar pode simbolizar um beijo. Pode nos sugar para dentro de sua trama. Um olhar pode ser sacana. Intenso e invasivo a ponto de constranger, de intimidar. Um olhar pode delatar, matar, destruir. Fazer o coração partir. Mas um olhar pode, ainda, seduzir, redimir, salvar, entusiasmar, acariciar. Se coubesse a mim redigir a Constituição, o artigo primeiro seria: É direito de todo o cidadão aprender a ler o olhar.

terça-feira, maio 24, 2011

Quebra-cabeça

“A capital do Canadá é Ottawa. Cândido Portinari é o maior pintor do Brasil. A palavra assassino tem quatros esses. O melhor time do Brasil é o Corinthians. Paulo Maluf é um #&*@!#$%¨&*!! Existem dois partidos no Brasil: Arena e MDB. Eu sou MDB.Vai comprar meu jornal, mas traz o Cidade de Santos. Só compre A Tribuna se o Cidade de Santos já tiver acabado. Você já tem 9 anos e ainda não sabe todas as capitais do Brasil? Traz o meu Guaraná gelado. Pega água pra mim. Eu, um peão, concorri com um monte de engenheiros e tirei o primeiro lugar na prova de conhecimentos gerais. Liga o toca-discos e põe no último volume. Se sua mãe se separasse de mim, você ficaria comigo ou com ela? Eu acho que nunca iria conseguir dirigir. Vou parar de beber quando as meninas ficarem mocinhas porque não quero que sintam vergonha de mim. Namoro até tarde? Na minha casa cabra-macho não vai passar das nove da noite. Não quero morrer velho, basta eu formar minhas filhas na faculdade e já está bom. Fica quieta, que eu tô assistindo o jornal. Solte o cachorro. Se acontecer alguma coisa com uma das minhas filhas eu me atiro na linha do trem. Acho a Angelina Muniz a mulher mais bonita do Brasil. Essa é uma pergunta idiota.Eu não sei o que você vê nesses Menudos, pra mim são todos uns veados. Se eu tivesse estudado, seria jornalista. É a profissão mais bonita que existe. Eu odeio despedidas. Calma, minha filha, a viagem já vai acabar”.

Essas frases são as peças principais que compõem o quebra-cabeça formado pelo meu pai, morto quando eu tinha 13 anos. Não sei se um dia conseguirei montá-lo completamente, mas prosseguirei tentando.

segunda-feira, maio 23, 2011

Transpiração e inspiração: o par perfeito

“A inspiração não é de todos os instantes. Só os loucos têm inspiração permanente”. Esta é uma das tantas frases sensacionais do poeta, romancista, crítico e musicólogo Mário de Andrade. Li-a ontem à noite, à página 249 do essencial História do Modernismo Brasileiro, de Mário da Silva Brito. Imediatamente, fui levada a refletir sobre o ofício da escrita e, por extensão, os conceitos de arte e criação. Outra variação sobre o mesmo tema advém de uma lembrança pessoal: trata-se de uma máxima do professor Dirceu Fernandes Lopes que, em suas aulas de História do Jornalismo no Brasil, frisava: “Escrever é 5% de inspiração e 95% de transpiração”.

Tanto a frase de Mário de Andrade quanto à do professor Dirceu nos remetem à importância do trabalho árduo em detrimento da espera acomodada pela inspiração divina. Ambas escancaram a verdade: quem escreve, pinta, toca, compõe, esculpe, atua, dança ou realiza qualquer outro tipo de atividade artística precisa ser, antes de tudo, um trabalhador. Um operário cujo esforço e labuta devem ser diários. Horas de prática, treino, reflexão, tentativa, erro, acerto, suor e cansaço são necessárias para exercitar os neurônios, abrir os poros da intuição e dilatar as pupilas da alma. Sem essa série cotidiana de ginástica física, mental e psicológica não há inspiração que se aproxime. Até porque ela é uma figura lindíssima, cheia de charme, exigente. E só aceita fazer par com quem luta, de forma obstinada, para merecê-la.

domingo, maio 22, 2011

Solidão

Ficar sozinha, por vezes, pode ser uma dádiva. No meu caso, pelo menos, a solidão traz consigo um aguçado senso de observação. Meus sentidos se elevam à quinta potência e me permitem ler e escrever com uma dose de entrega muito superior à do dia a dia, quando, geralmente, o tumulto é geral.

A leitura, por exemplo, se torna uma viagem bastante próxima do real, uma vez que a quietude possibilita um mergulho profundo no reino das palavras. Aliás, diferentemente dos mergulhos realizados na água, submergir às grandes profundidades de um texto geralmente nos traz mais oxigênio, além de eliminar qualquer possibilidade de pressão.

É verdade que a superfície tem seus encantos. Mas também é verdade que ela pode esperar.

quarta-feira, maio 04, 2011

Hilda Hilst e Adélia Prado


Com Hilda Hilst, em 2002, durante entrega do Prêmio Moinho Santista, concedido à autora pelo conjunto da obra.


Com Adélia Prado, em 2010, durante palestra que a poeta realizou em Cubatão.

Isso é incrível, mas só hoje me ocorreu avisar aqui no blog que minha dissertação de mestrado, defendida em 2003 e intitulada O sagrado e o profano nas poéticas de Hilda Hilst e Adélia Prado ,está disponível para leitura no meu site (que, por sinal, está desatualizadíssimo). Um trabalho que me tomou dois anos e do qual eu tenho um orgulho danado. Um mergulho profundo na obra de duas autoras que admiro muitíssimo. É uma pena que Hilda não esteja mais conosco, pelo menos no plano físico. Este trabalho tem sido, para mim, uma forma de reafirmar, sempre, o quanto eu as considero eternas. Para ler, basta clicar aqui.

Em tempo: quando tirei essa foto com Hilda, ela já falava e caminhava com extrema dificuldade devido à isquemia cerebral que havia sofrido. Na ocasião, a poeta estava em muitíssimo boa companhia, cercada por amigos queridos, como a escritora Lygia Fagundes Telles, o querido escritor Mora Fuentes (falecido em 2009, Mora nos recebeu carinhosamente na Casa do Sol, onde Hilda viveu durante décadas, em 2007, em dia inesquecível que relato aqui) e a artista plástica Maria Bonomi (que aparece à esquerda da foto, sorrindo). Com a cara de pau que me é peculiar, ao fim da cerimônia pedi licença ao grupo, me aproximei de Hilda, me apresentei e disse: "-Hilda, estou concluindo uma dissertação de mestrado sobre você e Adélia. O tema é tal, etc".

Em entrevista concedida aos Cadernos de Literatura Brasileira, publicado pelo Instituto Moreira Salles, Hilda já confessara que ficava comovidíssima quando descobria que fulano ou beltrano estava escrevendo uma dissertação/tese sobre sua obra. E naquele momento tive certeza de que a afirmação era a mais pura verdade. Debilitada pela doença, falando de modo compreensível apenas para os mais íntimos, Hilda resolveu poupar as palavras comigo. Ao ouvir meu relato, simplesmente pôs as duas mãos em meu rosto e me olhou com ternura imensa, emoldurada pelos olhos rasos d'água.

Hilda nos deixou em 4 de fevereiro de 2004.