quarta-feira, janeiro 23, 2008

Crônica de uma morte (há muito) anunciada

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Há poucos dias eu vi a cara da morte. Ela surgiu sob a forma de um sujeito alto, magro, enrugado, macilento, de aspecto carrancudo e opressor. Seu cabelo, muito preto, parecia ser peruca e não combinava em nada com a cara amarelada daquele indivíduo infame prostrado a poucos metros de onde eu estava.

A visão me causou horror, náuseas, tristeza, revolta, choro convulsivo. Precisei sair depressa dali, mas tive de ser amparada porque minhas pernas bambearam. Comecei a suar como nunca. Imediatamente, senti que o simples fato dele estar ali e ainda existir sugava a minha energia e roubava minhas forças como nenhum outro ser talvez jamais possa fazê-lo na face da Terra. Afinal, aquele resto de homem foi o que sobrou da criatura que, há 22 anos, matou meu pai covardemente, por motivo fútil, atirando nele pelas costas. Foi inevitável lembrar – depois de já estar mais calma – da saga do bruxinho Harry Potter – cuja vida é lutar para enfrentar o famigerado Valdemort, o “coisa-ruim” fictício que matou seus pais e que vive apenas “de” e “para” sugar a força do menino-bruxo.

Na minha realidade, distante do mundo dos bruxos e bruxas, o “Valdemort/coisa ruim” que tirou a vida de meu pai nunca foi preso. Tudo porque possui um álibi infalível em terras nacionais (principalmente no sertão brasileiro): dinheiro. Além disso, fugiu do flagrante, era réu-primário, não tinha antecedentes criminais e voltou três dias depois, com um bom advogado.

Muitos presenciaram o crime, ocorrido às 22 horas daquele domingo fatídico de 26 de janeiro de 1986. Na ocasião, a pracinha central da cidade de Japi, localizada no Rio Grande do Norte, a cerca de 130 quilômetros de Natal, ainda estava lotada. Porém, ninguém quis testemunhar contra o assassino. O motivo é simples: no sertão sem lei deste Brasil surreal, quem tem posses, terras, gado... Sempre foi, é e será intocável. E por isso, o “Valdemort do sertão” transita livremente. Tão livremente que, há cerca de duas semanas, parou o seu carrão na rua principal de Japi e desceu próximo do lugar onde eu, desafortunadamente, estava. Ele não me reconheceu, não me viu.

Mas isso não diminuiu o meu drama nem a minha dor. O fato é que eu não esperava ver aquele vilão à minha frente, assim, de repente e, confesso, nunca me preparei para esse dia. Achava, no fundo, que jamais iria acontecer. Japi é uma cidade minúscula e, até então, sempre que íamos até lá visitar minha vó e meus parentes (coisa que se repete a cada três, quatro anos) o “coisa-ruim” sumia, ficava ausente, escondia-se. Mas, o tempo passou e, dessa vez, ou ele não foi avisado da nossa presença ou, pior, perdeu de vez a vergonha.

Não foi difícil identificá-lo porque, por coincidência, me contaram, naquela mesma tarde, qual era o carro que o “Valdemort/coisa-ruim” possuía. E como só há duas pessoas em toda a cidade com um veículo daquela marca, não foi complicado deduzir... Vê-lo foi um choque. Um transtorno. Um desalento. Eu tinha apenas 13 anos quando tudo aconteceu e não o conhecia (ou pelo menos nunca tive memória nenhuma dele durante a minha infância).

As pessoas me dizem que ele está morre-não-morre... Doentíssimo... Há anos... Afirmam que tem uma coleção de enfermidades. Uma pior que a outra. É desprezado, não tem amigos, vive às traças e, vez ou outra, é acometido por tragédias pessoais, infortúnios, acidentes. A família sente vergonha dele e muita gente simplesmente não entende como o traste ainda está vivo... Mas eu, ora... Eu entendo. Sempre entendi. Para mim, a explicação reside em um provérbio popular bastante econômico nas palavras, mas de dimensões gigantescas no sentido: “Aqui se faz, aqui se paga”.

PS: a todos os que acompanham meu blog, peço desculpas pela falta de poesia deste texto. Mas, às vezes, na vida (e – graças aos céus – isso é muito raro...) não há espaço para ela.

Goimar Dantas
São Paulo, 23-01-08

Um comentário:

Anônimo disse...

Gói, você está enganada. Há muita poesia sim no seu texto. A poesia da dor, a poesia da nostalgia, da saudade, a poesia da impotência diante da crueldade do ato e de suas conseqüências. Há a poesia da constatação da impunidade amiga dos poderosos.
Seu texto é pessoal e social nisso. Mas há um consolo: a justiça do homem foi injusta com sua família, mas a justiça divina condenou esse assassino a viver o resto da vida com dor moral e dor física. Que ele não morra tão já, que purga seus pecados com a dor que causou a você e a sua família.
O texto traz novamente um passado que se nega a morrer, porque calcado num amor incondicional que mais podia ser mas que pouco foi (quem leu seu extraordinário "A linha do trem" sabe do que estou falando!
O que mitiga uma dor é o conforto de que de alguma forma que a causou está purgando. Acreditemos nisso.