quarta-feira, março 11, 2009
A professora de piano
Imagem: At The Piano, 1858-59; pintura de Whistler, James Abbott McNeill (1834-1900). Óleo sobre tela, 67 x 91.6 cm; The Taft Museum, Cincinnati, Ohio 3.
Eu deveria ter uns nove anos quando conheci Lúcia. Dona de uma beleza clássica, a moça tinha a pele clara, pontuada por sardas charmosas que se espalhavam pelo rosto. O nariz era perfeito: pequeno e afilado e, no lugar dos olhos, o que se viam eram dois faróis muito vivos e agitados, lançando luzes castanhas sobre pessoas, objetos e paisagens aos quais miravam. Os lábios rosados, o sorriso franco e os dentes alvos completavam o quadro.
Lúcia gostava de trazer os cabelos soltos, enfeitados por uma tiara. Eram lisos, volumosos, cheios de vida, mantidos à altura dos ombros e emoldurados por uma franja que emprestava à moça certo ar brejeiro. Aos 17 anos, devia medir cerca de 1,70 de altura. Seu porte, seus trejeitos e inteligência em nada lembravam alguém que apenas se despedia da adolescência.
As mãos eram um capítulo à parte. Para além da beleza, detinham um poder quase sobrenatural na medida em que, ao deslizar sobre teclas de piano, presenteavam Bach, Beethoven, Mozart e outros gênios da música, com mais alguns minutos de vida. E foi justamente essa habilidade que acabou por nos aproximar.
Naquele começo da década de 80, eu estudava no rígido Conservatório Municipal de Cubatão, uma instituição de ensino gratuita e extremamente conceituada na região. E ao tomar conhecimento do ensino de excelência oferecido pelo Conservatório, minha mãe resolveu que eu, com apenas sete anos, iria estudar lá. Simples assim.
Não demorou para que eu me destacasse como a pior aluna de todos os tempos. Um caso verdadeiramente perdido, a despeito de meus esforços para acompanhar as aulas de prática e de teoria musical. Um esforço mecânico, diga-se, porque desprovido do talento e da vontade genuína de aprender a tocar. A meu favor, só a minha precoce - mas já bem desenvolvida - dificuldade de aceitar o fracasso ou qualquer coisa que se assemelhasse a ele.
Eu seguia tentando, mas após bater meu próprio recorde de sucessivas notas baixas, Beth, minha professora de piano, chamou minha mãe num canto e vaticinou: “Dona Maria Onélia, é o seguinte: ou a Goimar toma algumas aulas particulares ou não conseguirá passar de ano. Eu faço o que posso, mas ainda é pouco para o tanto que ela precisa. Posso indicar a Lúcia, minha ex-aluna e ótima pianista.” A grana lá em casa era curtíssima. Mesmo assim, pra variar, minha mãe deu um jeito e lá fui eu ter aulas com a exímia musicista.
Logo no primeiro dia, a surpresa: a moça morava numa casa que eu, desde muito menina, achava linda, situada no bairro vizinho ao meu. Aquele imóvel típico de classe média dos anos 70, todo coberto com pastilhas rosas (sim, na época eu achava bonito), era, na minha opinião, uma espécie de mansão. Coisa de gente rica, com direito até mesmo a um pequeno jardim, além de uma varanda com enormes janelas de vidro. Incrível a dimensão das coisas quando a gente é criança e pobre, assim, nessa ordem.
O instrumento ficava na sala e Lúcia só precisou de uma única horinha para corrigir minha postura desengonçada, bem como o modo largado e desprovido de elegância com que eu movimentava as mãos sobre o teclado.
Detentora de uma técnica apurada, ela dizia: “Goimar, preste atenção nas suas articulações. Observe seus dedos: estão quase deitados sobre as teclas. Não pode ser assim! Eles precisam de força, mas também de leveza, graça. Veja só como se faz”. E então ela tocava e me mostrava como transformar mãos em pontes que conduziam ao paraíso. Impossível repetir o feito. Pelo menos para mim.
Lúcia era séria, reservada. Certo dia, porém, seu irmão mais velho – por quem nutri uma paixonite infantil e platônica – invadiu a sala e gritou: “Lúcia! Corre, vem ver! O ônibus espacial chegou!!!”. E lá foi Lúcia, em desabalada carreira, na direção de outro cômodo da casa, empolgadíssima com a chegada da tal missão espacial transmitida, ao vivo, pela televisão. Fiquei ali sozinha, com cara de Mané, sem entender o por quê daquele alvoroço por causa de um ônibus.
Com a ajuda de Lúcia, consegui notas razoáveis nos exames daquele ano, culminando com o fim das aulas particulares. Ocorre que minha incompetência musical era invencível e, bastaram as lições avançarem, ano após ano, para que minha mediocridade se agigantasse aos olhos de todos. Não tinha mesmo jeito e, antes de completar 12 primaveras, larguei os estudos de piano. E foi uma sensação incrível de libertação e alívio.
O tempo seguiu seu curso e, aos 17, cursando o colegial e felicíssima por seguir minha vocação de leitora compulsiva, recebi a notícia: Lúcia, então com 25 anos, tinha câncer no seio. Fiquei chocada. Tudo o que me vinha à mente era a beleza daquela moça, deslizando suas mãos adolescentes pelo piano, sempre com desenvoltura ímpar; gritando, feliz da vida, pelo sucesso da tal missão espacial; trajando bermudas e camisetas de tons e estampas delicadas e exalando, a cada vez que me recebia para as aulas, um cheiro bom de sabonete Alma de flores.
Também me lembrei do dia em que empaquei numa música, errando sempre a mesma passagem. Foi a única vez em que ela perdeu a paciência comigo. Talvez porque já soubesse que eu não tinha mesmo o menor jeito pra coisa e que, ao fim e ao cabo, eu estava era tomando seu tempo e sua juventude.
Lúcia faleceu poucos meses após ter descoberto a doença e, por um desses mistérios inexplicáveis, vinte anos após sua partida, volta e meia a moça ainda invade meus pensamentos com uma força descomunal.
Dia desses sonhei com ela e acordei tomada pela sensação de que precisava dedicar-lhe um texto. Afinal, a maturidade me mostrou que a prosa também é um tipo de música em que linhas funcionam como partituras; sílabas, como notas; vírgulas, como pausas; autores, como maestros; coesão e coerência, como harmonia. E tudo obedecendo a um ritmo próprio, que caracteriza as sinfonias compostas de palavras.
E é uma dessas sinfonias que posso oferecer à Lúcia como singelo agradecimento por ter me dedicado algumas horas do seu pouco tempo sobre a terra. Tudo para tentar me ensinar a maior dentre todas as artes. Justamente aquela que prescinde de palavras para emocionar a todos, sem distinção.
Aceite, professora, essa sinfonia executada sob a batuta da prosa e, por isso mesmo, tão cheia de limitações. É só o que sou capaz de fazer quando desejo tocar um determinado órgão bastante musical e do qual, acredito, jamais vou desistir de extrair não apenas sons, mas também sentimentos e emoções: o coração das pessoas.
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10 comentários:
Maravilha.
W.F
ai, que lindo!
também me lembro das suas aulas e até hoje quando passo em frente aquela casa, também me recordo de como ela era superlativa pra nós e nossa realidade.
texto tocante!
Lindo, Gói!
Goimar!
Senti-me tocado pela sua sensibilidade de homenagear, e mui justamente, uma anônina para nós, leitores, mas alguém que marcou você a ponto de, 20 anos após a morte dela, você ainda mantê-la no coração.
Ah se todos tivesse sua capacidade com as palavras para homenagear tanta gente extraordinária e humilde, mas cujo talento eles elvam consigo para o além. No caso da Lúcia, ela levou o dela para o céu, porém fez você nos brindar com uma página de rara beleza na sensibilidade, na gratidão e no reconhecimento.
Parabéns de novo.
Prof. Leo Ricino
W.F, Zil, Nana e Leo!
Obrigada!! Adoro a presença e o incentivo de vocês! Voltem sempre, sempre, sempre!
beijos!
Lindo texto Goi.
Eu também tive minhas aulas de piano e também me mostrei uma catástrofe! No meu caso as aulas foram indicação da professora da primeira série, que achava que o piano me ajudaria a ser menos lerda para ecrever e acompanhar suas aulas. Não deu certo nem para uma coisa e nem para a outra: continuei morosa e sem, até que depois de muito choro minha mãe concedeu a carta de alforria e eu puder voltar feliz aos meus gibis!
lindo meu amor. mau.
Olá Goimar,
Belíssima homenagem.
Não sabia de suas tentativas de aprender piano. Ano passado perdi um amigo cuja amizade teve início ainda nos tempos em que trabalhamos juntos no Metrô de SP - por volta de 1970 - ; amigo queridíssimo e um exímio pianista, o Glênio.
Abração,
Orlando.
Querida Goimar,
Lindo texto, belas imagens. Fiquei emocionada.
Não sabia que um dia você teve aulas de piano. Suas descrições nos transportam para a cena, como se estivéssemos vendo um fotografia. Belíssimo.
Beijão,
Rô
Meu bem, meu "Mau": sei que você é leitor atento deste blog, mas também sei que não tem muita paciência para fazer comentários... Por isso mesmo: obrigada!
Cássia e Orlando: eu adoro quando os leitores usam este espaço para compartilhar suas histórias também. Portanto, usem e abusem desta minha humilde casa virtual!
Rô, minha querida: você não tem ideia de como seu comentário me fez feliz. Tê-la por aqui é uma alegria indescritível. Volte sempre, comente, critique. Você pode e deve.
Um beijo grande em todos vocês!
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